APRESENTAÇÃO
Inicialmente, quero esclarecer que, nos ensaios e nos capítulos que se seguirão, me referirei à poesia e ao lirismo como sendo a mesma coisa. Da mesma forma, chamarei de poema cada uma das letras de canção de Renato Russo. Isto porque, além de ver, em seus textos, todos os requisitos artísticos literários que os identifiquem com outros textos do século XX, já historicamente considerados como poesia, desconsiderarei suas relações com as melodias dos arranjos musicais que a eles se somam e que podem fazer destes letras feitas para integrarem canções.
Na leitura dos poemas, não considerarei aspectos da vida de Renato Russo. Também não lerei os poemas relacionando-os com os contextos históricos de quando foram escritos. Farei uma leitura livre e abordando apenas o que os poemas me dizem e relacionando-os com o esclarecimento. Por isso, o que me proponho a fazer é diferente de todos os estudos com que tenho me deparado sobre a obra poética de Renato Russo, pois estes sempre, de uma maneira ou de outros, buscam sentidos e significados para os poemas relacionando-os à biografia do poeta ou colocando-os como expressões de contextos históricos.
A abordagem que darei à poesia de Renato Russo se origina na tese de que os poemas compostos por ele estabelecem, na estrutura profunda, um eixo temático fundamentado no percurso pelo qual passa o eu-lírico em seu processo para atingir a maioridade intelectual e emocional: o pleno esclarecimento.
No pleno esclarecimento, o eu-lírico compreende completamente a submissão do mundo à manipulação de um ‘Sistema’ que se constitui como a força maior e quase imperceptível que rege os rumos individuais e coletivos da sociedade humana. No pleno esclarecimento, o eu-lírico se torna capaz de revelar o poder deste ‘Sistema’ sobre si mesmo e sobre todas as pessoas.
Em sua caminhada para o amadurecimento racional e emocional, o eu-lírico de Renato Russo realiza ponderações sobre inúmeros temas relacionados, principalmente, com acontecimentos pessoais da vida deste eu-lírico e inquietações sobre aspectos do mundo coletivo.
Embora, à primeira vista, estas reflexões pareçam ter um caráter apenas pessoal, através do poder da especificidade da linguagem literária e do lirismo, tais reflexões e temas alcançam a universalidade e a atemporalidade, se caracterizando como questões essenciais e que podem estar presentes na vida de todos e a qualquer tempo. Basta lembrar que, como afirmou Octávio Paz,
o poema expressa realidades alheias à modernidade, mundos e estratos psíquicos que não só não são mais antigos como impermeáveis às mudanças históricas.[1]
Leitor de Nietzsche, Renato Russo acaba por trazer o pensamento do “eterno retorno do mesmo” para o cerne de sua obra poética, explorando a ideia de que o processo da vida é formado por um devir, um repetitivo processo de controle que não cessa e se apresenta em situações que se repetem de geração em geração sem que quaisquer mudanças significativas aconteçam na estrutura profunda das engrenagens deste Sistema.
Se o esclarecimento torna o eu-lírico capaz de ver as verdades que se escondem na escuridão e na cegueira que domina e subjuga a grande maioria das pessoas, são as consequências desta maturidade racional e emocional que vão, aos poucos, modificando este indivíduo esclarecido, fazendo-o passar por estágios que, cada vez mais, o conduzem a um crescente sofrimento marcado pela desilusão e a desesperança diante de sua impotência em transformar o mundo para bem, até a sua tristeza e a solidão tardias, processo este pelo qual o indivíduo esclarecido passa com plena consciência de tudo.
Isto mostra que o esclarecimento é algo ambíguo em sua essência: se a priori ele parece ser um prêmio, a posteriori, com o passar do tempo, ele se revela um fardo que poucos conseguem carregar durante a vida. Ocorre que o indivíduo esclarecido assisti a todas as mazelas e à maldade do mundo de olhos abertos, iluminados, sensíveis e conscientes, tentando ajudar as demais pessoas a também se esclarecerem, enquanto a maioria das pessoas passa cegamente e tendo olhos voltados apenas para seus interesses pessoais e a mente voltada para o fluxo do Sistema.
O esclarecimento propicia sim um estado de liberdade, mas uma liberdade possível apenas na mente do indivíduo esclarecido e da qual, mesmo sofrendo, aquele que se esclarece não quer abrir mão.
É sobre este estado de esclarecimento e iluminação que Renato Russo constrói sua poesia publicada nos álbuns da banda Legião Urbana. De forma que o percurso de seus poemas leva o eu-lírico da resistência juvenil e a vontade de provocar uma revolução coletiva até a desesperança e à solidão experimentadas na certeza da imutabilidade do Sistema.
Não pretendo que leituras aqui serão feitas sejam tomadas como verdades definitivas ou única possibilidade de atribuição de sentido aos textos. Muito pelo contrário. Desejo que as relações de sentido que atribuo sejam tomadas apenas como mais uma possibilidade de leitura de uma poesia que sei estar muito além de apenas poemas isolados.
Vejo os poemas de Renato Russo como peças de uma estrutura maior que corresponde a uma obra complexa, como se fosse um projeto de expressão com o intuito de disseminar a importância e a urgente necessidade de seu público também se esclarecer. É certo que não é possível afirmar que ele fez isso de maneira deliberada, mas não cabe a nós dizer suas intenções. Cabe-nos apenas ler sua obra como nossos olhos e resignificá-la com nossa recepção.
Sei que Renato Russo não era apenas um simples compositor de rock como há muitos. Sei que sua poesia não pode ficar limitada ao datado estereótipo de porta voz de uma geração. Sua a obra é muito maior que os protestos do Rock Brasília dos anos 1980. Ele era um grande poeta que dominou com excelência a tecitura de versos e fez deles instrumentos para contribuir para conscientização de seu público acerca das verdades escondidas da realidade do mundo.
Isto posto, iniciemos nosso trajeto de leitura pela presença do esclarecimento no lirismo de Renato Russo.
[1] PAZ (1993, p. 142). In A outra voz.